1. Virtualidade
As noites são incontroláveis;
as tardes, não se pode pegá-las;
nem as manhãs,
que essas são matreiras.
Pode-se amá-las inteiras,
pode-se amá-las a penas,
na memória, no retrato,
sem tempo, sem posse, sem mãos.
(Do livro Moinho)
2. Latências de amor
Naquele tempo os dias amanheciam,
e as camas de palha eram cúmplices
de amores naquele tempo.
As meninas que já cresciam
não mais brincavam nas noites,
que estas eram dos meninos.
Os quartos das moças formadas
ficavam dentro dos quartos dos pais:
evitavam-se encontros noturnos.
Nos rios banhavam-se moças,
aonde moços não iam;
e as águas tocavam seus corpos,
o que os moços não podiam.
Mas a lua acariciava as matas;
e as grotas daquelas noites
gemiam, gemiam,
enquanto nos leitos contidos,
leitos das casas esparsas,
moços e moças queimavam
como em lamparina o pavio.
Nos domingos daquele tempo
saíam a pastar os gados
e, no adro da capela,
entre rezas os beijos dados.
(Do livro Moinho)
3. Poética floral
Flor. A inefável.
A companheira do anjo.
Henriqueta Lisboa
Dos amores-perfeitos da mata,
ele colheu o mais belo,
o que de vestido de chita
era a morena-menina.
Das flores que ali brotavam,
hoje restam somente as boninas
e as desse vestido de chita
comprado com justa medida.
Das flores que ali brotavam
(Entre cores o roxo exala),
viceja somente o perfume
de violetas violadas.
Hoje ele não planta,
não colhe nos milharais
as flores desse vestido.
Ele não é mais.
Se as mãos plantam na terra
flores que nos encantam,
a vida brota no peito
o canto de uma saudade,
a voz de um desencanto.
(Do livro Moinho)
4. Cotidiano
O amor a tudo aceita:
aquela estranha mania
que antes não se via;
o cabelo mal penteado,
que a este não é dado
manter-se inviolado
à noite.
São tudo frutos na colheita:
o amor é compassivo
perante as botas espalhadas
ou a roupa fora do lugar,
perante a face suja
que não houve tempo de lavar...
E o amor continua aceito
nesses dois corpos no leito,
sobre o colchão de palha
cúmplice,
sob a lua de prata
tácita.
(Do livro Moinho)
5. Um nome para a ausência
Que saíste a ver no deserto?
Uma cana abalada pelo vento,
um camelo em seu passo lento,
um grão de areia no deserto,
ou uma pedra só em seu tormento?
Que saíste a ver?
Um homem de vestidos delicados,
uma mulher de vestes bem lavadas,
um pobre mendigando sem sapatos
ou um sapato sobre a areia e sem pés?
Que saíste a ver?
Talvez o nada que é tudo,
talvez esse tudo que não sabes.
Antes do profeta sobre a areia,
antes de alpercatas em seus pés,
muito antes da Serpente que cantava,
e muito antes do jardim e plantações,
perguntavam seres incontidos:
“quem é esse que se move sobre as águas?”
(Do livro Moinho)
6. O fardo da lavra
O lavrador
não lavra a dor.
A dor lavra
o lavrador,
sua cor,
sua flor,
seu fulgor.
Mas não o seu amor.
(Do livro Moinho)
7. (Des) motivo
Escrevo porque o tempo insiste
e a minha vida está incompleta.
Ora sou alegre, ora triste:
sou poeta.
Fujo das coisas fugidias,
no entanto delas é que eu faço
meu gozo, meu tormento e dias
no traço.
Nestes versos que edifico,
não sei se fico ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Este é o meu canto: um nada que é tudo,
notas do tempo em que, disperso,
sei-me entoando um canto mudo:
– mais nada.
(Do livro Moinho)
8. Êxodo rural
A noite sobre o telhado,
indelével penumbra,
já não mais vê,
com seu olhar amável,
a presença de corpos
na escura casa.
As lamparinas na canastra,
cansadas
de iluminar a noite,
fatigadas desse ato tão nobre.
As lamparinas na canastra,
passadas;
e a casa nua
nesta noite de lua,
entre montanhas.
As lamparinas na canastra,
apagadas;
e a vida na vila vê luzes
de postes acesas.
(Do livro Moinho)
9. As rédeas do tempo
As rédeas do tempo estão nas mãos de Deus,
este verbo sempre ecoado,
este fogo caído no deserto,
eivado de amor e fúria
durante quarenta anos.
– Não, não se reduz a este tempo
um amor tão retorcido.
E são nestas horas imensuráveis
que ele nos leva, leves no vento,
paisagem retorcida construída
que se desfaz.
As mãos de Deus nos deformam,
pois precisamos alcançar
sua eterna vida inatingível.
É leve ou pesada a mão que se estende dos céus?
A pele já nos pesa sobre a face
feita à imagem e semelhança de Deus.
(Do livro Moinho)
10. Marionete
Agora eu estou sem hora,
despido do que enfim
em mim só era passante.
Agora sou esta mesa,
sou este banco, esta sala,
que têm a vida constante.
Sou na parede o retrato,
com moldura de aço,
guardado de traça e tempo.
Agora eu estou sem fim,
e brinco no fim da tarde
com a morte que não virá.
Mas morre a tarde em seu fim,
e aos passos eu me desfaço...
Aos poucos já não sou eu,
aos poucos estou sem mim.
(Do livro Moinho)
11. Bucólica
Estrada no alto;
lá embaixo, no mato, rancho de adobe.
Rancho, ribanceira, mato, poeira, estrada,
trilha, cerca de arame farpado.
O carro-de-boi canta na estrada,
e lá embaixo range a chaminé do rancho.
As aves roceiras roçam
a cabeça do ipê sem flor.
A porteira no bambuzal permite
a uma vaca solitária passar.
A estrada no alto, lá no alto, bem lá,
onde o gado e o homem se perdem.
O rancho de adobe aqui, bem aqui,
onde a melodia da lembrança canta.
(Do livro Moinho)
12. Moinho
Neste rancho pequeno,
de adobe e de silêncio,
dorme a pedra no sereno,
sobre águas que passam claras.
A moega é abandono no tempo
sobre a calha que não balança,
que ao milho não mais conduz.
A luz entra pelo telhado
sem acariciar o fubá dourado,
que outrora era a própria luz.
Entre pedras, águas, lagartos,
vive o passado de passos,
de vozes, de milhos fartos.
Essa pedra não mais gira,
não tritura;
é abandono nesse rancho,
nesse tempo,
sem pessoas, sem canções, sem fubá.
É uma pedra
sobre águas que o tempo não pára.
(Do livro Moinho)
13. Verbetes para o mar
Mar, palavra bonita,
de um som azul,
parecendo uma via aberta,
por onde vão navios
leves,
palomas,
de velas brancas ao ar.
Mar, palavra pequena,
de infinitas atrações,
de ondas entreabertas,
espumantes,
indo e vindo claras,
claras, sem parar.
Mar.
Mas de águas irrequietas,
incontidas,
espraiando-se a outras margens
à deriva.
(Do livro Moinho)
14. Epitáfio do desamor
As flores já estão mortas,
e estas boninas não são;
quem as colocou no túmulo
foi de alguém certa mão;
e o que escreveram na lápide
é o que se escreve em vão:
“Maria Antônia da Silva”
(1937 - 1997)
(Do livro Moinho)
15. Rosa da palavra
Jaz entreaberta entre delírios, entre folhas verdes, esta rosa.
Jaz, e não está morta.
Já nesta horta fecunda de desejos,
gramas erguidas sem pés de um deus forjado,
sem os pés pesados que as pisavam.
A tarde é imensa de tão azul,
e não há fuligens que proíbam os insetos alados me tocarem,
suas patas encrespando meus pelos quentes.
Nunca me depilei,
nunca pude entregar-me ao calor dos trópicos.
Era um câncer que me punia,
uma voz estrondosa do céu
ameaçando relâmpagos com tanto sol.
E agora a tarde me leva no azul,
me embala entre os insetos alados,
e eu pouso com minhas patas disformes
nas pétalas desta rosa.
Pétalas nunca silenciadas.
Não é de seda esta superfície em que me perco,
mas é sonora,
e tremem minhas garras sobre ela,
miméticas, atarraxadas, ásperas como áspero metal.
O espírito quer ser adorado
por mim, por meu louco corpo,
e por isso exige um verbo todo novo,
mas sem rituais que tornem silenciosas
as ofertas desabrochando-se como rosas
neste jardim.
O jardim jaz aberto a esta hora,
e aquele deus não passeia mais pela brisa da tarde.
Agora é outro deus.
A brisa é azul,
e os homens andam nus
como serpentes.
(Do livro Moinho)